Quando se corta o fio do detonador

Por Michael Nuñez

Muitas vezes nos pegamos pensando nas atitudes das pessoas. Seja nos noticiários de TV, jornais, revistas, no prédio onde mora. É comum, no dia a dia, as pessoas manifestarem seus comentários sobre algum ato alheio. Até aí, nenhuma novidade. Afinal, isso faz parte de nossa cultura. Têm mais audiência os veículos de comunicação que falam da vida dos outros. Não importa se é verdade ou mentira. Simplesmente, fala-se.

Outro dia, uma vizinha de apartamento tocou a campainha de casa para falar a respeito do livro de reclamações do prédio em que moramos. Causou-lhe estranheza que constasse no livro uma reclamação contra o apartamento 104, por coincidência o mesmo em que moramos eu, minha esposa e minha filha.

Surpresa quem ficou foi minha esposa, que, ao ler o tal “livro”, confirmou que alguém estava descontente com o nosso comportamento. Dizia a reclamação: os moradores do apartamento 104 vivem fazendo barulho de madrugada. Por diversas vezes escutei eles “arrastando” móveis até tarde da noite.

Sinceramente, jamais senti vontade de tocar a campainha de um vizinho. Muito menos para reclamar de algo. Porém, dessa vez, a espinha do peixe, que ainda está atravessada na minha garganta, é grande demais. A raiva não se refere a reclamação em si, mas, sim, ao fato de ela estar fundamentada em não-verdades. Não quero aqui dizer que a reclamante esteja “ouvindo demais”. Nem que ela tenha inventado tal ruído. Mas é difícil de acreditar que um casal que possui um bebê recém-nascido passe a madrugada arrastando móveis. Ou terá sido minha filha que tentou mudar o berço de lugar?

O mais curioso dessa história é que a vizinha da frente, que veio nos informar sobre tal reclamação, foi quem mais ficou indignada com essa história. Afinal, se algo de estranho tivesse acontecido de madrugada em nosso apartamento, acredito que ela seria a primeira a nos questionar, como o fizera semanas atrás com um vizinho que temos em comum, no mesmo andar. Esse, sim, costuma quebrar vasos de plantas, bater portas e discutir até altas horas da madrugada.

Na semana passada, recebi um texto que fala sobre a raiva. E foi exatamente isso que me fez externar a história da tal “vizinha”. O texto fala que é mais fácil agir agressivamente do que com compaixão, consideração, amor. Valeu o tapa com luva de pelica, pois me fez pensar no episódio do prédio. O próprio texto fala do quão difícil é controlar e amenizar o sentimento de raiva. Por isso, sugere: “o melhor que fazemos é dar o que temos de melhor”. Nesse caso, o melhor que posso fazer por esta “querida vizinha” é desejar-lhe saúde e lindas noites de sono. Já que, ao quer tudo indica, todos os seus pesadelos estão relacionados ao apartamento de cima.

Confesso que o texto escrito por Emir Tomazelli me fez desistir de apertar a campainha da vizinha, quando o braço já estava esticado na direção do interruptor. Instantaneamente, a cena de um antigo filme me vem à cabeça: quando Mel Gibson, protagonista de “A Máquina Mortífera”, faltando poucos segundos para a explosão de uma bomba, evitou o pior ao cortar “o fio” do detonador.

Melhor assim, não?

Abaixo segue o artigo de Emir Tomazelli a que me refiro no texto. Recomendo.

Boa leitura!

Observações a cerca da experiência de raiva

Por Emir Tomazelli

Por que a raiva é algo muito comum de ser sentido?

Partindo desta pergunta, sugiro:

O comportamento hostil é mais simples que o comportamento amoroso, logo, mais freqüente. O gesto hostil requer apenas uma via de descarga, que é o agir. O ato e a ação são próprios pra isto. Mexemos os músculos e nos livramos da tensão imediata acumulada – a inteligência ajuda a disfarçar a brutalidade maquiando a atitude manifesta. Por exemplo, a criança xinga a própria mãe. A mãe, para não revidar a brutalidade do filho, engole o sapo da raiva que ele lhe despertou e finge que o ama, mesmo que ele seja um estúpido com ela. Pronto, esta feita a confusão! Ela fica desgastada pelo trabalhão que teve para conter-se, e o garoto fica impune e equivocadamente cheio de razão. Egoisticamente certo. Aqui mora o perigo.

O agir de supetão ou por impulso não precisa da ajuda do pensamento. Infelizmente, os atos agressivos são menos evoluídos que os que envolvem respeito, consideração, solidariedade. O pequeno exemplo acima confirma.
Temos raiva à toa porque qualquer coisa que nos desorganize ou nos retire da chamada área de conforto – isto é, a área de não surpresa! -, é suficiente para exigir de nós operações tantas e tão complexas que, para acessarmos esse nível, deveremos fazer um enorme esforço de adiamento e de contenção emocional. Além do que, a espera é uma experiência muito difícil para todos nós. Saber aguardar, ter maturidade para permanecer calmo sem saber o que se está vivendo, ter serenidade para observar o que está acontecendo ao redor, e paciência para formular pensamentos úteis ao invés de fantasias que substituam a realidade; são comportamentos que exigem muito de nós.

Quanto mais infantis somos, mais raivosos, mais desrespeitosos. Quanto mais fechados em nosso narcisismo menos sentido o outro humano tem. Nossa bondade, mesmo a mais genuína, está sempre carregada de impulsos negativos para os quais não temos explicação. Os psicoterapeutas sabem muito bem disso, e é exatamente por esta razão que os tratamentos não progridem ou terminam de forma abrupta. A raiva às nossas falhas nos dificulta o desenvolvimento que poderíamos realizar para curá-las. Olha só o paradoxo!

Somos dominados por coisas aparentemente tolas porque, apesar da nossa criatividade e da incomensurável inteligência de que dispomos, somos tolos, mesquinhos, invejosos, e desenvolvemos um amor pelo nosso ego e por nosso ódio. Só mesmo pensando como Freud pensou o narcisismo, compreenderemos que temos uma relação sensual e passional com nosso ego. Somos auto-apaixonados. Desejamo-nos mais que a qualquer um, estamos cegos ao outro pelo que nossa autoconservação nos demanda. Mesmo que não façamos nada que aparente amor por nós, somos auto-devotados. Teimosos, renitentes, somos metódica e precisamente sempre nós mesmos, e impomos nossas regras ao outro, e, se esse outro não as aceita, impomos a ele o nosso desamor, o nosso ódio, o nosso rancor, a nossa traição.

Para lidar com a raiva e os sentimentos agressivos... Bem, isso exige. Exige de nós muito esforço e muita vontade de trabalhar.

Geralmente o medo e a tristeza ajudam-nos a ficarmos mais amorosos, menos arrogantes, menos imortais, mais perecíveis e efêmeros. Curiosamente esses sentimentos mais delicados, mais densos e mais profundos nos ajudam a sermos menos destrutivos e a raiva diminui ou, minimamente, se abranda. Para lidarmos com a raiva, a única via madura possível, é a de querermos dar aos outros o melhor de nós mesmos. Sem esse melhor, nada feito. Há somente um caminho: desenvolvermos a fé em fazermos de nós o que de melhor pode ser feito é darmos o melhor de nós, e, para que isto nos possa fazer melhores, o melhor que fazemos é dar o que temos de melhor. Certamente nos fará melhor!!

3 comentários:

Anônimo disse...

Vivemos estressados, apressados, amargurados e todos os "ados" sinônimos de uma cidade grande, em que a vida e o pavio são curtos e cheios de motivos para externalizamos nossos problemas internos.
Acredito que a raiva é o momento de colocar para fora aquilo que, em nós, está ruim. O problema não é o outo, mas nós mesmos. São problemas que não temos maturidade para resolver.
O mais difícil, portanto, é lidar com esse sentimento, saber entendê-lo e utilizá-lo de forma positiva para nossa evolução.
Mas o melhor e mais saudável é conseguir não jogar no outro esse sentimento e ficar em paz com as pessoas ao redor e com o mundo.

Gláucia disse...

De olhos bem abertos!

Acredito termos alguns graus de raiva. Aquela que dá quando, por azar, topamos o dedinho no pé da cama pela manhã é natural. Precisamos tomar cuidado com as raivas que a sociedade moderna cria e alimenta. Cada vez mais os noticiários mostram que "um dia de fúria" não é mais apenas o título de filme... de uma história encenada. Jovens entram em escolas e matam professores e alunos, pais atiram filhos pela janela, filhos matam pais a paulada...
Os jornais pecam em tornar esses fatos um simples comércio de sangue. O teor da notícia se perde na linguagem sensacionalista. E a verdadeira análise do ser humano e o mundo em que vivemos deixa de ser feita.

Gláucia Viola

arioba disse...

Caro Nuñes, pense na gravidade! Sem algum esforço, tudo "cai", assim é a questão moral do homem, que sem algum esforço, tudo também descamba.
A evolução do espírito se dá pelo intelecto, moral e ética, e demandam esforço, sem ele, não se avança, na melhor das hipóteses, se estagna!!